• Nós Não Somos Lixo – Uma Crônica Sobre   Relacionamentos Descartáveis
  • Nós Não Somos Lixo – Uma Crônica Sobre


    Relacionamentos Descartáveis


    – Sou de uma geração em que as pessoas consertam as coisas ao invés de simplesmente jogar fora.

    Disse ele parado ali, completamente estarrecido pela brisa fria da porta enquanto ela se preparava para fechar definitivamente os trincos e deixar um capítulo inteiro da sua vida para trás. Os olhos marejados de angústia e abandono não sabiam mentir o passado de brigas, mágoas e tormentas. É que às vezes a gente machuca o outro mesmo sem saber, assim, nas pequenas indelicadezas do cotidiano. Quando se vê, a embarcação já está avariada demais para continuar a travessia. Os pedaços se desconstroem ali mesmo, numa imensidão de sentimentos, palavras e reticências. E como é fácil abandonar os destroços daquilo que um dia fez viagens tão extraordinárias. O desamparo hoje vive lado a lado com a solidão. Em uma sociedade carente de cuidados, os relacionamentos muitas vezes são tratados como objeto descartável e jogados no lixo com a mesma facilidade com que se despreza uma folha de papel rabiscada.

    Manter uma dança a dois é quase tão difícil quanto encontrar alguém para subir ao palco. Se tudo fossem flores se chamaria jardim e não relacionamento. Confesso achar extremamente complicado essa história de colocar alguém com uma trajetória de vida, criação e valores completamente diferentes dos nossos dentro das páginas do nosso livro. A gente veio por um caminho e o outro por uma trilha completamente diferente, sendo assim, é mais do que esperado que ambos se comportem de formas distintas frente a possíveis contratempos. Pela falta de tato em compreender as andanças do outro, surgem as brigas e discussões que instigam um dos dois a abandonar o navio mais cedo. É tão comum a gente jogar tudo para o alto por tão pouco. Tanto sentimento bonito que demorou deliciosos parágrafos para ser construído. Uma divergência de opiniões, um desacordo momentâneo, verde ou rosa, calabresa ou quatro queijos, Paris ou São Paulo, direita ou esquerda, norte ou sul, passado ou futuro. Tudo, dos mínimos aos maiores percalços, quando a relação não está bem consolidada, parece ser motivo de renúncia. É muito mais fácil terminar uma parceria que não está dando certo do que simplesmente tentar acertar os pontos de discordância para que o “tique-taque” do relógio seja encantadoramente o mesmo. No mundo da facilidade, quando algo se quebra, na medida do possível, se troca por outro. Premissa que infelizmente desancora muitos romances por aí.

    De fato, à primeira vista, pode parecer muito mais fácil ficar à deriva. Afinal de contas o mar está abarrotado de peixes. Mas se a cada turbulência for necessário recomeçar o fluxo de novo e de novo e de novo, a terra nunca será vista. Imagine os grandes navegadores voltando ao porto na primeira turbulência. Embarcar no caminho do outro também faz parte de uma viagem duradoura. Descompassos sempre existirão aqui, ali ou acolá. O que importa mesmo é o quanto de você está de fato entregue nesta parceria, e só. Caso contrário, é apenas um círculo vicioso de troca de protagonistas. Não existem relacionamentos, pessoas ou momentos perfeitos. O que existem são pessoas realmente dispostas a velejar não importa as condições do tempo. O amor é um vento poderoso. Quando a gente deixa, quando o coração tá cheinho de permissividade ele consegue ser brisa, ventania e furacão na proporção certa, só direcionar as velas que o amor faz o resto.

    Relacionamento exige muito mais que disposição, demanda constância e perseverança. Uma vez que os rumos da embarcação são estabelecidos, na grande maioria das vezes uma boa conversa e respirar (bem fundo) são capazes de fazer milagres. Não é porque sua xícara preferida lascou que ela perdeu todo o simbolismo afetivo ou o aroma doce do café da sua mãe. Vai dizer que a comida da vovó na panela que mal se aguenta no fogão não é muito melhor do que muita massa de restaurante requintado?!

    Se não tem jeito mesmo, pule da prancha e continue a nadar. Mas se ainda resta um pontinho que seja de vontade e bem querer, reparar as arestas, por mais complexo que possa parecer, pode ser muito mais prazeroso e recompensador do que começar o jogo do amor do zero. Um brinde aos recomeços e outro tintilar de taças ainda maior para as permanências.

    Saiu pela porta porque o livre arbítrio a permitia. Voltou, porque sabia que alguém a esperava pacientemente segurando as chaves deixadas impetuosamente para trás.

    – Trouxe a cola – disse ela.

    E um coração novinho em folha também.


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