Se da janela lateral do quarto de dormir a galera do Clube da Esquina via uma igreja, um sinal de glória, um muro branco e um voo pássaro, uma grade, um velho sinal, hoje a gente vê… outra janela lateral do quarto de dormir. E um aglomerado de vidas ali dentro. A criança maldosa que quebra os brinquedos do irmão mais novo enquanto ele dorme, o senhorzinho que assiste ao Multishow privê toda santa noite, o menino púbere que bate punheta invariavelmente às seis da tarde, só pra dar aquela relaxadinha depois de voltar da escola, o casal que transa de quatro entre tapas e beijos. E essa, talvez, seja uma das mais dúbias heranças que o crescimento desordenado das cidades deixou para nós, cosmopolitas e reféns da selva de pedra.
A urbanização nos fez voyeurs. Por mais que seja contra os seus princípios, que a sua namorada tenha ciúme, que o padre o mande rezar um pai nosso e três ave-marias para se redimir, que você não queira ou que até mesmo nem saiba o que é isso. Para descobrir a sua faceta voyeur, não se olhe no espelho – olhe pela janela do seu quarto e conte quantas outras janelas você consegue ver. Eu vejo pelo menos 30. Algumas iluminadas, outras apagadas, mas todas elas abrigando pessoas com histórias, hábitos e comportamentos completamente diferentes dos seus. E o mais importante: com o direito à privacidade que você involuntariamente (?) viola sempre que não se nega a espiar aquela vizinha gostosa que desfila pelada noite e dia no sétimo andar do Edifício Dallas. Sim, aquela. A que sai do banho deliciosamente enrolada numa toalha lilás felpuda e deixa a cortina de pelos industriais cair ao chão sem o menor pudor para em seguida dar lugar a um vestido verde de bolinhas brancas que decente – e incrivelmente – bate na altura do joelho. Não, ela não está querendo dar para você. Nem lhe falta uma pilha de louça para lavar. Não, ela também não é puta. Provavelmente, é só mais uma entre nós, que prezamos pela liberdade e pelo direito de fazermos o que bem entendermos entre quatro paredes – pouco importando se uma delas é de vidro.
Num mundo onde cada vez mais as fronteiras do privado e do público vêm se transcendendo e se entrelaçando, intimidade virou luxo. Não falo da intimidade entre você e o seu parceiro, da destreza que você tem para ficar nu na frente dela ou da maneira sinérgica e bonita como ela entende e respeita o seu silêncio. Falo da intimidade como um direito: a possibilidade de ser você, de ser livre de julgamentos e de ser humano pelo menos uma vez por dia. Já nos bastam o terno e a gravata no ambiente de trabalho, o fone de ouvido dentro do transporte público e a educação na fila do banco. A porta de casa é o limite onde você deve deixar de ser Maria, contadora e cliente da vendinha do seu Clóvis para, enfim, se tornar mãe, filha, esposa, amor, gostosa, cachorra, vadia, chupadora de paus e que adora ficar de quatro. E foda-se o mundo. Por mais que sua intimidade esteja passível de ser violada por um vizinho voyeur como eu, abrir mão dela é sucumbir à lógica desumana das grandes metrópoles.
Por isso, chegue em casa hoje e, antes de se preocupar em ligar a TV para absorver centenas de abobrinhas e de informações manipuladas, tire a roupa. Largue os sapatos na porta de entrada, a calça no sofá da sala, a camisa no meio do corredor, o sutiã na fruteira da cozinha e a calcinha em cima da cama. Se tiver com quem transar, transe. Se se não tiver, bata uma, duas, três – quem não tem cão caça com gato. Sem absolutamente se preocupar com as frestas da persiana, com a sombra projetada na cortina, com os olhos púberes do vizinho do prédio da frente. A casa é sua, as regras são suas. E talvez uma das suas missões nesse mundo seja fazer com que a vizinhança se afilie ao voyeurismo. Com que o adolescente do prédio da frente cancele a assinatura do Brazzers e passe a se masturbar usando outras inspirações, com que o casal de cinquentões da janela lateral reacenda a chama do sexo. Enfim, com que outras pessoas se inspirem a serem elas mesmas em um dos poucos – quiçá o único – espaços originalmente privados das grandes cidades. Transe: você não está sendo filmado.