• Há males que vêm para o bem
  • Há males que vêm para o bem


    “Há males que vêm para o bem” é um dos ditados que mais ouço nesta vida. É tipo o vestidinho preto das afirmações de consolo, manja? Basta ser demitido, quebrar o pé ou perder o avião para que alguém faça cara de senhor Miyagi e o diga, pode observar. Mas será mesmo que faz algum sentido?

    Passei a maior parte da minha existência colocando “Há males que vêm para o bem” no fundo do cesto das baboseiras – o mesmo em que coloco “Quando casar sara”, “Se não deu certo é porque ainda não chegou ao fim” e outras afirmações das quais discordo. Porém, devido a acontecimentos que contarei melhor no parágrafo seguinte, percebi que “Há males que vêm para o bem” é muito mais do que uma expressão que as avós usam tanto quanto assadeira de bolo.

    Tudo começou num domingo, com uma ligação do meu pai: “Seu irmão precisou ser internado, descobriram que ele está com um negócio sério”.  Silêncio.  “Meu irmão? “Negócio sério? Ele não fuma, não bebe e consegue plantar bananeira, como assim?”, pensei, e em menos de dois minutos eu já estava dentro do carro, acelerando em direção ao hospital e pensando no quanto a vida leva jeito para a canalhice.

    Depois do susto inicial – que me fez ter ainda mais certeza da fragilidade da condição humana e da necessidade de aproveitarmos o dia de hoje -, eu vi meu irmão perder a vasta cabeleira, tomar injeção na barriga, comer comida sem tempero, fazer “hospital office”, ser gentil e educado com todos que dele queriam tirar sangue e a pressão… E o mais importante: graças aos nossos papos longos e às novidades que descobri logo na primeira semana de internação, eu vi que estava vendo-o pouco.

    Entre dentadas em torradas com geleia e caretas feitas após goladas em cafés com gosto de meia de maratonista, eu percebi que não poderia ter deixado a vida me afastar tanto do meu irmão, que deveria tê-lo procurado mais vezes – e não apenas em datas comemorativas. Percebi que nunca deveria ter desistido depois da primeira caixa postal ou devido à preguiça que, muitas vezes, fez com que eu cancelasse convites que nem haviam saído do plano mental. E acredito que ele também tenha notado o mesmo. De verdade. Não fomos muito além do “Depois que você sair daqui, vamos comer pizza com borda “vulcão”, começar a correr no parque e assistir juntos à série Westworld”, mas o arrependimento pela cratera que deixamos formar entre nós – e a importância de cobri-la o quanto antes – estava escrito em nossos olhos, nas risadas que certamente foram ouvidas por outros enfermos, na vontade de dar um beijo e um abraço nele que eu sentia quando me despedia de longe, para evitar contaminá-lo.

    Hoje, felizmente, ele já está quase cem por cento. E dessa tormenta inesperada, que o fez ficar com parte da vida pausada por mais de seis meses, sei que muito aprendizado já foi – e ainda será – extraído. Por exemplo? Além de ter percebido o quanto eu estava longe de uma pessoa importante, tive verdadeiras lições de como enfrentar grandes problemas sem tirar o sorriso do rosto e deixar de exalar positividade. Apesar de ter todo o direito de se queixar, nas tantas horas em que estive com ele no hospital, eu só o ouvi reclamar do amargor do comprimido – sem perder o bom humor, vale dizer; e isso fez com que eu reavaliasse os motivos das minhas reclamações. Saca? E fez com que eu me sentisse um completo idiota devido às bufadas que dei por causa de chuva, queda de internet e outras coisas que, quando comparadas a um linfoma do tamanho de um testículo de Velociraptor, tornam-se irrisórias.

    E eu não fui o único a aprender, não. Tenho certeza que meu irmão já está muito mais forte do que quando pisou naquele hospital pela primeira vez, ainda sem entender que cazzo estava rolando dentro dele. Sei que agora ele se importa um pouco menos com trabalho e muito mais com o amor e a amizade; e que graças ao bocado de lembranças e visitas que recebeu tem mais noção do quanto é querido – até por gente que nem imaginava.

    É, “Há males que vêm para o bem” faz algum sentido. Entretanto, a meu ver, ficaria ainda melhor se fosse: “Há males que nos transformam em pessoas melhores”. Que tal? Ah, mas aí fica parecido com “O que não nos mata nos fortalece” – que também é uma boa frase. Quer saber? Foda-se esse negócio de frase! Eu só queria um gancho para dizer algo muito mais importante: na sexta passada meu irmão fez aquela que, provavelmente, foi a última sessão de quimioterapia, e quando olho para trás – em direção àquilo que não foi totalmente despedaçado pelo furacão que agora está sem força -, percebo que, enfim, chegou o tão esperado momento da reconstrução, o instante em que o sol finalmente atravessou as nuvens em nome de um renascimento – e não me refiro apenas ao renascimento dos fios de cabelo, que logo ultrapassarão os meus em quantidade e densidade, compreende? Refiro-me, principalmente, às reconstruções e solidez que só serão possíveis porque um tufão passou por dentro dele, obrigando-o – e também a mim – a perceber a diferença entre os resistentes abrigos e ilusões que não sobrevivem nem a mínimas brisas.

    Tem gente que acha que todas as coisas acontecem por algum motivo. Eu, não. Para mim não passa de acaso, de um conjunto de variáveis agindo simultaneamente a nosso favor, contra nós ou tudo junto. Mas já que aconteceu, que a combinação dos dados da vida o fizeram passar por um momento ruim, o melhor que podemos fazer é entender que algumas das mais belas flores, infelizmente, só conseguem brotar depois de muita merda. Além do mais, depois do longo inverno que passou, a primavera ficará ainda mais colorida, cheirosa e imperdível, acredite.

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