• Me deixa ser essa metamorfose ambulante
  • Me deixa ser essa metamorfose ambulante


    Já fui um roqueiro que vivia a desmerecer o sertanejo – e também o samba, o funk, o forró, o pop… -, um devorador de coxinhas que se achava muito mais feliz do que os comedores de quinoa e um admirador de cinema argentino que ria, sonoramente, da cara dos fãs de Velozes & Furiosos.

    Não sou mais, porém. E me orgulho um bocado disso.

    A vida fez o enorme favor de me “ecletizar”; mostrou-me, das melhores maneiras possíveis, que é possível amar o azul sem odiar o resto das cores.

    Lembro-me, como se fosse hoje, da primeira vez em que ouvi João Nogueira, num churrasco que só tinha linguiça e pão. Aconteceu no ápice da minha fase grunge, no fim dos anos noventa. Eu tinha cabelão, uma guitarra preta toda fodida e aquela rebeldia típica dos adolescentes perdidos entre a infância e o mundo adulto. De repente, o Kurt Cobain parou de esfolar a amigdala, e todos os roqueiros que por lá estavam se voltaram ao rádio em busca da causa daquela interrupção abrupta. O CD não tinha engasgado, como era comum nos tempos pré-USB. A energia também não havia caído. O que rolou? Um corajoso tinha trocado, sem pedir permissão, o In Utero por Meus Momentos. Logo, começou uma chuva de “Que porra é essa?” e “Volta para o Nirvana, carái!”. Eu também reclamei, confesso. Reclamei sem dar a mínima chance ao novo ritmo, como se só o rock pudesse fazer a minha cabeça. Reclamamos até que o Kurt reassumiu o microfone. Mais de dez anos depois, porém, mais uma vez eu esbarrei com o som João Nogueira, já com a cabeça bem mais aberta e com menos volume capilar nela. E, por insistência de um amigo – sambista que só falta usar sapato bicolor -, eu dei uma chance ao João e, de quebra, ao samba. Uma chance de verdade, sem preconceitos. Nas primeiras notas do novo ritmo, senti-me pecando, como um torcedor do Corinthians cantando “Quando surge o alviverde imponente…” ou um Judas colocando veneno de rato no uísque do Keith Richards. Depois, no entanto, a culpa foi passando e… Dei o braço a torcer! “Tem razão, isso é bom”, assumi. “Não falei?”, meu amigo disse antes de me dar um pen drive com uma porção de sambas geniais. Hoje, sem qualquer vergonha, afirmo: curto Motörhead e, também, Clara Nunes. E não me sinto um vira-casaca por isso. Nem um pouco. E digo mais: quando um roqueiro mete o pau no samba antes mesmo de tê-lo ouvido, eu sou o primeiro a perguntar: “O que você conhece dele para dizer que não gosta?”.

    O rock sempre será o queridinho do meu coração, porém, curto moda de viola, Alceu Valença, Fagner e, até, a música Sorry do Justin Bieber (aquele menino que foi de usuário de fraldas Pampers a tatuado em seis meses). E me sinto ótimo assim, sem aquela ilusória obrigação de tomar um partido e apedrejar ou dar as costas aos outros.

    A minha “ecletização” não aconteceu apenas no campo musical, não. Se no passado eu passava longe da prateleira da locadora que continha ações com pouco tutano, hoje, na Netflix, eu me amarro num Walking Dead e em outros conteúdos que não exigem muito esforço mental e repertório. E não me sinto mais burro por isso. Nem jogando tempo fora. Hoje penso que inteligente mesmo é saber intercalar Woody Allen e Kurosawa com Os Mercenários e explosões causadas pelo Jason Statham (aquele carequinha que já matou mais que o Ebola).

    E dá para ser feliz, também, entre o pastel de feira encharcado de óleo e a tapioca com chia e outros paranauês que eu incluo porque a nutricionista mandou, para reduzir o índice glicêmico e outros lances dos quais eu adorava zombar. É óbvio que pastel é mais gostoso, apesar de queimar os beiços. Não seria louco o bastante para dizer “arroz integral com frango grelhado é mais apetitoso do que pizza”, contudo, consegui encontrar um equilíbrio entre o delicioso e o necessário, e vou muito bem, obrigado. Não larguei o meu “uísquin”, mas, durante a semana, vou de água, só. E volto de Uber (Porque busco, também, o equilíbrio entre o discurso e as minhas ações).

    Hoje eu faço questão de dar uma chance ao novo. Saca? Dou uma oportunidade ao diferente, pois, só assim, sinto-me no direito de dizer “não curti”, como rolou depois que li dois livros do Paulo Coelho. Talvez, pela temática. Enfim.

    Só sei que o Ricardo de hoje não diz mais “Só quero ir à Europa”, porque hoje ele (tô a fim de falar na terceira pessoa, licença!) também tem vontade de fazer estripulias na Disney e comer gafanhotos da Ásia. E conhecer a natureza em seu estado mais puro na África. E, tudo isso, com direito a muita experimentação de culturas e coisas que, um dia, eu (ele) neguei por pura idiotice, sem ao menos conhecer.

    Meu mundinho cresceu muito depois que comecei a me abrir ao mundão, sério. E recomendo que você faça o mesmo nestes tempos de extrema polarização e violência contra aquele que pensa diferente. Saia um pouco dos seus grupinhos! Esse lance de “patotização” não faz bem algum, atrofia. Navegue por diversos mares, troque ideia com todo tipo de gente, permita-se esbarrar com pontos de vista que farão você concluir: “Ainda bem que saí do meu quadrado”.

    Tem gente que, até hoje, não mistura manga com leite. E olha que essa lenda foi inventada no Brasil Colonial para impedir que os escravos roubassem leite dos senhores do engenho. Quanto atraso! Eu quero mesmo é misturar tudo, manga com leite, salgado com doce, rap com jazz, poesia com cachaça (como bem fez Vinicius de Moraes)… Eu quero me misturar à multidão e, num domingo silencioso, a partes de mim que ainda nem conheço. Não quero ser só isso ou apenas aquilo. Não! Eu quero ser um pouco de tudo, um tiquinho de cada coisa capaz de me fazer feliz sem deixar ninguém triste.

    Afinal, eu sou Brasileiro: em meu sangue, entre glóbulos brancos e vermelhos, há molho de tomate, feijoada, acarajé, bacalhoada e… Samba! Ou não tem?

    ass-ricardo


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