• Sem lactose, nem açúcar, nem glúten: sobre  como minha vida ficou, desde que você se foi
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    como minha vida ficou, desde que você se foi


    Você disse que iria embora sem deixar rastros, mas não era verdade. A casa ainda está cheia deles, e por mais que eu tente desviar minha visão dos seus fragmentos que ainda vivem por aqui, falho na maior parte das vezes. Você foi, mas a sua presença permanece como um fantasma me assombrando e me lembrando o tempo inteiro de como eu errei quando disse que precisava dar um tempo. Você me deu, todo tempo do mundo. E agora, aqui, nesse apartamento tão vazio, mas tão cheio de você, eu fico tentando entender o que fazer com todo tempo do mundo. Ainda não descobri.

    Ainda tem você naquela xícara que trouxemos de Paris. Eu nunca gostei muito de Paris. Sempre te disse que lá eu não me sentia bem sendo eu mesmo. Não entendia porque as pessoas me olhavam tanto quando saia na rua com aquele par de chinelos favorito que você tinha me dado quando torci o pé e não podia usar tênis. Eu dizia que todo mundo olhava pra mim, e você respondia que era verdade mesmo. “Estão te olhando porque te acham lindo. Eu também olharia se fosse eles”, você respondia com aquele sorriso de canto da boca mais linda que eu já tinha visto. Eu, fingia que acreditava.

    Tem você também naquela mesa da sala que você quis fazer usando pallets. Eu ria de você e dizia que aquelas madeiras velhas nunca iriam se tornar algo bonito, e você me olhava e dizia que eu não sabia de nada. E com as mãos mais habilidosas que eu conheci, aqueles pedaços velhos de madeira se transformaram no meu móvel preferido da sala. Talvez porque tinha sido feito por você. Talvez porque ela me lembrava de algo que você me dizia sempre: o mundo pode ser bonito ou feio, depende só do nosso olhar.

    Ainda tem você naquela gaveta de camisetas-de-dormir que você roubou de mim, mas que eu nunca tive coragem de pedir de volta. Porque você ficava linda nelas. Ainda mais quando me dizia sorrindo que gostava de dormir com as minhas camisetas e não com as suas. Deve ser porque elas eram grandes e pareciam camisolas cobrindo aquele corpo pequeno e charmoso. Sempre que te via vestindo elas, somente elas, pensava em como tinha sorte de você não saber o quanto era linda.

    Ainda tinha você nas anotações nos nossos livros de viagem. Quando você vinha com aquele brilho nos olhos, segurando um livro todo rabiscado debaixo do braço, eu sabia que lá vinha. E você sabia que eu jamais resistiria ao seu olhar pidão implorando pra gente fazer mais uma loucura, no estilo amor-vamos-pro-Camboja-comigo? Eu me fazia de difícil, mas no final sempre cedia, mesmo achando que me arrependeria depois. Mas no fundo, eu nunca me arrependia, porque mesmo nas maiores roubadas, você sempre dava um jeito de mostrar que as coisas não estavam tão ruins quanto pareciam. E eu tinha certeza de que elas nunca ficariam ruins enquanto eu tivesse você do meu lado.

    Ainda tem você na cozinha, que se tornou a parte mais completa da casa. Eu te provocava dizendo que não poderia confiar numa chef tão magra, e você me mandava calar a boca e provar mais uma invenção sua. Eu adorava ser a sua cobaia, e fingia que prestava atenção quando você dizia não-tem-lactose-nem-açúcar-e-nem-gluten-acredita?, mas o que eu não acreditava de verdade era em como eu tinha sorte de poder comer tão bem todos os dias. E em como você de fato conseguia deixar boa até uma comida sem-lactose-nem-açúcar-nem-glúten.

    Ainda tem o seu quadro pendurado na parede do quarto. Você nua, de costas, entrando no mar: uma das coisas que mais gostava de fazer na vida. “Amor, meu elemento é água, não consigo viver longe do mar”, você dizia. E naquele dia eu te cliquei, linda, despida, olhando pra mim com um sorriso largo maior do que o mundo. Revelei a foto e você disse que queria pendurar na parede. Eu ri e disse que não poderia concordar mais. Preciso confessar que ainda não tive coragem de te tirar de lá – da parede, e da minha vida.

    Eu já deveria ter te conhecido melhor e ter acreditado quando você disse que para você não existia meio termo. “Só sei amar por inteiro. Pedir um tempo é amar pela metade.” Pensei ter visto uma lágrima começando a escorrer dos seus olhos, mas sabia que você não choraria na minha frente. Você tinha amor-próprio demais para isso. Você pegou algumas coisas, e disse que algum dia voltaria para pegar o resto. Nunca mais voltou.

    Eu, fiquei aqui.

    Os dias que se seguiram sem você, foram como que sem um pedaço de mim. Eu entendi que a casa que eu achava que era minha, era na verdade nossa. E quando você se foi, ela ficou sendo só metade da gente. E não entendi como uma casa tão cheia poderia estar tão vazia, e fui trocando móveis, trazendo mais coisas, até entender que o vazio não estava fora. O vazio era do lado de dentro.

    De você, nunca mais ouvi. Segui como se deve fazer, mas ainda não consegui preencher o vazio. Sigo tentando.

    Você disse que iria embora sem deixar rastros mas, definitivamente, não era verdade.


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