• Déjà vu, Sexo e Apartamentos
  • Déjà vu, Sexo e Apartamentos


    A frequência às casas de homens solteiros proporcionou a Heloísa o fino trato do diagnóstico da personalidade de seus parceiros, baseada no binômio sexo-apartamento. O convite pra tomar um vinho ou fumar um baseado “lá no meu apartamento” se constituía na senha que dava largada ao ritual do acasalamento.

     A fim de cumprir delicadamente a primeira etapa do ciclo, que resultaria na desconhecida e desejada pseudo-intimidade, os homens solteiros costumam utilizar o pretexto do consumo de álcool, maconha, ópio ou qualquer outro psicoativo para atrair a parceira até a sua teia de possibilidades.

    Obviamente que este não era um privilégio apenas dos homens. Heloísa já fizera isto em algumas circunstâncias, e sabia exatamente o que pulsa na mente, coração, orifícios e poros daquele que adentra o próprio apartamento, em companhia de um quase estranho, portando desejo, tesão e dúvidas. O uso moderado ou abusivo de alguma quantidade de droga era sempre necessário para operar no recém-constituído casal uma área de passeio entre a realidade interna e externa, um espaço de repouso e neutralidade. Algum grau de embriaguez era indispensável para trazer a desenvoltura necessária ao sexo voraz, despretensioso e ao mesmo tempo, seguro.

    Enfim, circunscritos num espaço pouco confiável e ao mesmo tempo, livre para o exercício de qualquer fantasia, Heloísa nunca desprezou o tom de beleza e mistério que há em adentrar o território de um homem que vive só.

    Para além da vontade de fazer sexo, motivo primaz que fazia Heloísa entregar-se repetidamente às mesmas arriscadas e lascivas experiências, a curta permanência nos apartamentos de seus novos amigos se tornava uma verdadeira incursão etnográfica no solitário e povoado universo particular dos homens solteiros. Embora o ritual fosse composto basicamente pelos mesmos elementos – o que tornava o programa da noite um museu de grandes novidades – algumas questões eram, curiosamente, alvo de análise.

    Se lhe serviam vinhos em taças, xícaras ou copinhos de cachaça; se tocavam Beatles, Bob Marley, Nina Simone ou Gilberto Gil; se os lençóis da cama estavam limpos, usados ou continham marcas da noite anterior. Tudo fazia parte de uma conjuntura reveladora do tipo de personalidade do sujeito.

    O que havia na geladeira, a limpeza da casa, as prateleiras de DVD´s, os títulos dos livros na estante, enfim, a combinação destes e outros detalhes diziam de maneira silenciosa de quem se tratava. Se valeria à pena retornar, se haveria ponto final ou se era possível deixar-se capturar por algum detalhe pessoal que elevasse aquele homem a um patamar acima de sua potência sexual.

    Heloísa examinava atenta e despretensiosamente a existência de um fio de afinidade – uma obra prima subjetiva, qualquer móvel, imã de geladeira ou souvenir – que soprasse ao seu ouvido aquele segredo da alma masculina no qual uma mulher busca se esbarrar. Ao estar em frente ao segredo, seria inevitável entregar-se à descoberta do enigma: era isto que Heloísa chamava de paixão. Estes apartamentos, territórios de poder e revelação de verdades, diziam-lhe muito mais do que as palavras que aqueles homens eram capazes de sussurrar ao seu ouvido.

    Palhetas de guitarra esquecidas numa mesinha de canto alertavam que além do sexo, poderia existir música. Se avistasse instrumentos, coleções de cd´s ou qualquer outro indício de que ali havia uma relação de intimidade com a música, imediatamente se desarmava como se desse para si mesma, uma espécie de chance extra às possibilidades de um reencontro.

    Deliciava-se em ler todos os títulos de livros que encontrasse na sua frente, imaginando os assuntos que poderiam povoar a cabeça dele, quais temas lhe eram mais afins, se seria capaz de discutir com ele alguns dos autores presentes na estante.

    Sem guardar expectativas amorosas, era fácil procurar na pia do banheiro, dentre os objetos esquecidos por outras mulheres, uma presilha com a qual pudesse prender os cabelos antes de tomar aquele estranho banho com shampoo “2 em 1”, que de forma prática e rápida a maioria dos homens costuma utilizar, com raras exceções. Abrindo delicadamente os armários do banheiro, com sorte, era possível encontrar um hidratante, cuja marca também revelava a estirpe, o bom ou mau gosto das demais amantes frequentadoras do local.

    Foi assim que num domingo pela manhã, Heloísa encontrou um hidratante famoso de morango com champagne, com o qual refrescou todo o corpo cansado de tanto sexo e álcool. Após terminar a sessão de banho quente e produção estética com os cosméticos alheios, sentou-se no divã da sala, mexendo em velhas fotos que estavam ajuntadas dentro de um pequeno baú de vime.

    Desta forma conheceu a família do quase estranho parceiro: mãe, pai, avó, primos e tias, todos sorridentes em fotos amareladas da década de 80. Sentiu ainda um pouco mais de vergonha ao se deparar com pequenas intimidades do cotidiano como um cortador de unhas enferrujado, analgésicos, telefones rabiscados em pedaços de papel, contas de luz, incenso de patchuli.

    Mesmo diante das sutis e constrangedoras verdades contidas nos objetos, enquanto seu parceiro ainda dormia, os dedos de Heloísa insistiram em folhear uma pequena agenda onde encontrou um antigo bilhetinho com marca de batom que dizia: “foi uma delícia dormir com você”.  Sorriu imaginando quantas noites embaladas a vinho continham a história daquele apartamento de espaço exíguo, porém ventilado, no alto de Ondina.

    Heloísa pegou um batom avermelhado em sua bolsa, passou suavemente sobre os lábios e fez, no antigo bilhete, uma nova marca de batom. Economizando suas próprias palavras e apropriando-se das alheias, colocou o papelzinho em cima do aparador da sala, ao lado das chaves do carro. Assim, quando ele acordasse e resolvesse sair de casa, encontraria com facilidade a reedição das palavras de despedida, que um dia fora deixada por outra mulher, nas mesmas circunstâncias.

    Entrou vagarosamente no quarto dele para procurar seus brincos e despediu-se do apartamento na ponta dos pés, enquanto seu amigo dormia, tão lindo, vestido numa cueca cinza samba-canção. Não quis fazer barulho para não ter que tomar café da manhã ao lado dele e inaugurar uma nova etapa de socialização pós-bebida, que lhe custaria a verdade. Não se dizem mentiras diante da sobriedade da luz da manhã. Então fugiu sutilmente, aliviada, enjoada, saciada.

    Horas depois, recebeu no celular uma mensagem dele que dizia: “adorei o bilhete, a noite foi mesmo deliciosa, parecia até que já nos conhecíamos”. Desligando o celular, Heloísa pensou que, assim como o bilhete, a noite não passou de mais um dejà vu.

    Entre apartamentos, sexo e devaneios, ela colecionava amizades orgásticas, amores líquidos e mentirosas paixões. Reeditava a fugacidade dos relacionamentos em bilhetes, marcas de shampoos, em chamadas que não mais atendia, em emails que não respondia. Tudo isso porque acreditava no amor e sabia que ele estava guardado bem distante dali, entregue ao ermo do futuro, às incertas juras de felicidade.

    Algum dia, talvez, poderia se libertar do déjà vu da vida real, de se dar sem ser, de gozar sem amar, de estar sempre acompanhada, cortejada e assediada pela solidão contida nos fecundos desertos dos apartamentos de homens solteiros, aonde seu corpo andava passeando sem amor.


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